O Perigo da Simplificação: A Erosão do Direito no Judiciário Moderno
- Adv. Tatyana M. Zagari

- 13 de set. de 2024
- 3 min de leitura

As recentes propostas de simplificação da atividade jurisdicional, notadamente aquelas defendidas pelo Ministro Barroso e outros expoentes do Judiciário, suscitam preocupações legítimas sobre o futuro da ciência do Direito.
Em uma tentativa declarada de desobstruir os tribunais e mitigar o volume assombroso de processos, propõe-se o uso de uma linguagem simples e sintética, supostamente mais acessível.
Contudo, sob a aparência benigna dessa intenção, oculta-se uma armadilha perigosa: a progressiva desarticulação do raciocínio jurídico e a consequente impermeabilidade das decisões judiciais aos questionamentos fundamentais.
O que se observa é um processo de crescente automatização da argumentação jurídica, onde o que deveria ser uma acurada elaboração do raciocínio, se converte em uma mera repetição de fórmulas preestabelecidas.
Advogados, em sua maioria, tornaram-se replicadores de argumentos estandardizados, esquecendo-se de que o verdadeiro exercício do Direito reside na capacidade de realizar uma análise profunda dos acontecimentos, das personagens e das circunstâncias sociais, políticas e culturais em que se inserem.
Cabe ao jurista ir além da subsunção formal à norma, confrontando o caso concreto com a mens legis e com o contexto histórico e político que lhe deu origem. O exercício do Direito, portanto, assume uma dimensão sociológica, filosófica e política, buscando desnudar e contestar as dinâmicas de poder que, sob o disfarce de axiomas consagrados, pretendem perpetuar-se no corpo normativo.
A deficiência técnica e argumentativa, que já permeava a prática advocatícia, agora se reflete no modus operandi dos magistrados, os quais, ao abdicar de um exame mais profundo, se limitam a colacionar trechos de doutrina, dispositivos legais e depoimentos de testemunhas de maneira fragmentada, sem a necessária articulação lógica.
Sob o pálio do livre convencimento motivado, o juiz de outrora, hoje transfigurado no mero "decididor", deixa de exercer sua nobre função de intérprete e aplicador do Direito, delegando a responsabilidade do juízo decisório a um acervo de argumentos estanques e desconexos.
O verdadeiro cerne da preocupação, contudo, reside na proposta de uma simplificação ainda mais radical: a redução do discurso jurídico, a limitação das manifestações das partes e a progressiva delegação do julgamento a mecanismos automatizados. As partes veem-se tolhidas em seu direito de voz; os advogados, restringidos em seu espaço de argumentação; e os juízes, tentados a entregar a missão jurisdicional a sistemas que operam em conformidade com algoritmos, distantes das nuances e complexidades da realidade humana e da ciência do Direito.
Dessa forma, resolve-se o problema do excesso de processos, mas à custa de um sacrifício inaceitável: a própria essência do Direito enquanto ciência.
Ao expurgar a profundidade das argumentações e relegar o debate jurídico a um plano secundário, caminha-se para a construção de um sistema que, embora mais célere, torna-se incapaz de cumprir sua função precípua: a de fazer Justiça.
Cabe aqui uma reflexão mais detida sobre os riscos dessa tendência. Michel Foucault, ao tratar do poder disciplinar e da tecnicidade das instituições, já alertava para os perigos de um sistema que automatiza as práticas humanas, transformando sujeitos em meros objetos de um processo. No Direito, essa crítica assume contornos ainda mais graves, pois é justamente a dialética, o embate argumentativo e a ponderação dos conflitos que conferem ao Judiciário sua legitimidade. Ao sucumbir ao pragmatismo excessivo, o Judiciário abdica de seu papel de guardião das liberdades e caminha para uma despersonalização da atividade jurisdicional.
Desta forma, os magistrados alcançarão seus mais recônditos desejos: livrarem-se definitivamente dos processos, uma vez que teremos, tão-somente, profissionais de tecnologia operando vultosos sistemas de algoritmos, em nababescos prédios resfriados por nossa água.
Urge, portanto, que as vozes críticas sejam ouvidas, que o Direito recupere seu espaço de reflexão e que o Judiciário resista à tentação de se tornar um instrumento de mera gestão de litígios. O caminho para uma Justiça mais eficiente não pode passar pela redução do debate; pelo contrário, deve-se fomentar a valorização da argumentação substancial, a escuta atenta das partes e a revalorização do papel do juiz enquanto intérprete dos conflitos sociais e jurídicos. Somente assim preservaremos a razão de ser do Direito e garantiremos que a busca pela celeridade não se transforme em um atalho para a injustiça.
Em tempo, convém recordar que a inteligência artificial deve servir para nos auxiliar, instruir e potencializar nossas reflexões, jamais para suplantá-las. Se me coubesse a tarefa de representar um computador trajado como juiz, certamente não lograria a precisão e a destreza alcançadas pela imagem concebida pela IA.
Texto de Tatyana Marçal Zagari
Imagem gerada por I.A.

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